terça-feira, abril 15, 2008

acordo ortográfico

Como alguém disse em relação à política, em que se defende que esta é demasiada séria (ou importante) para ser deixada exclusivamente aos políticos, o mesmo se pode aferir em relação à língua. Por isso, os linguistas que declaram, semi-ofendidos, que deveriam ter um papel preponderante no que concerne ao Acordo Ortográfico (ou reforma ortográfica) estão, implicitamente, a instituir-se como os verdadeiros donos da língua, mesmo que advoguem o argumento mais vulgar de todos - que vem nos manuais - que defende que a língua é de todos, isto é, dos falantes.
Neste sentido, importa sublinhar que, no que diz respeito a uma espécie de desamarramento linguístico, é no Brasil que tudo se inicia. Na verdade, a polémica duma maior ou menor emancipação foi, desde a independência do Brasil, em 1822, motivo que gerou, em terras brasileiras, grandes controvérsias. Basta lermos um pouco aqueles autores brasileiros de oitocentos como José de Alencar ou Gonçalves Dias (ou mesmo Machado de Assis) para verificarmos que os sinais independentistas em relação à língua foram, a seu tempo, motivo de intensa polémica, pois, segundo estes autores, a expressão intrínseca do verdadeiro sentir do povo brasileiro só se poderia efectuar através duma língua brasileira.
Mais tarde, através do Movimento Modernista Brasileiro, por volta de 1922, outros autores, com Mário de Andrade à cabeça, tentaram retomar o ímpeto nacionalista de oitocentos. Felizmente, estas opções ideológicas nunca tiveram seguimento e a prometida Gramatiquinha da Fala Brasileira, do líder incontestado dos modernistas brasileiros, nunca chegou a ver a luz do dia.
O que está em causa com o Acordo Ortográfico não é mais do que uma unificação ao nível da grafia. Se quisermos, podemos entender isso como um meio meramente institucional de afirmação internacional da língua, visto que, por muito que os defensores do não-acordo expliquem, não se compreende como é que uma língua consegue possuir, oficialmente, duas ortografias. A imagem que podemos esboçar em que alguém, neste momento, se encontra a verter documentos ou livros do brasileiro (e uso o vocábulo sem aspas) para o português ou vice-versa é hilariante e ridícula.
Por ser somente ortográfica, esta reforma não altera em nada aquilo que é verdadeiramente a riqueza duma língua, a qual se pode resumir à afortunada expressão unidade na variedade. Cito Coseriu, um linguista romeno: "Na linguagem é importante o pólo da variedade, que corresponde à expressão individual, mas também o é da unidade, que corresponde à comunicação interindividual e é garantia de intercompreensão. A linguagem expressa o indivíduo por seu carácter de criação, mas expressa também o ambiente social e nacional, por se carácter de repetição, de aceitação de uma norma, que é ao mesmo tempo histórica e sincrónica: existe o falar porque existem indivíduos que pensam e sentem, e existem 'línguas' como entidades históricas e com sistemas e normas ideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em si mesma, senão também comunicação, finalidade instrumental, expressão para outro, cultura objectivada historicamente e que transcende ao indivíduo".
Deste modo, é em nome duma maior instrumentalização da língua que devemos todos unificar as nossas vontades, pois como salientou Celso Cunha, "uma língua é tanto mais prestigiosa quanto mais comunicada e comunicável". Assim, um acordo que unifique a grafia (e nunca, como é óbvio, a oralidade, até porque eu consigo entender melhor um falante do Rio de Janeiro - a norma padrão do português brasileiro -, do que um outro falante do concelho da Povoação em S. Miguel, nos Açores), só pode influir nessa mesma comunicabilidade da própria língua, que é, como sabemos, a sua maior vitalidade e o seu maior seguro de vida.
De facto, a língua é um assunto demasiado sério para ser deixado aos linguistas...

(publicado no jornal A Voz de Trás-os-Montes, em 24/Abril/2008)

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