Em recente artigo no jornal Público, Pacheco Pereira discorre sobre o que ele chama uma cultura da irrelevância. Não posso deixar de concordar com as suas linhas fundamentais. Com efeito, este tipo de posicionamento cultural por parte dos nossos meios de comunicação social, com especial relevo para os três canais generalistas de televisão é, a meu ver, um sinal de preocupação nas sociedades actuais e, particularmente, nas que dizem respeito ao nosso espaço cultural que é o mundo ocidental. Por isso, fico perplexo quando olho para a televisão e vejo, em Cannes, uma série de pessoas que esperam horas e horas e horas por um actor ou actriz, aos gritos, frenéticos, com máquina fotográfica na mão, e com um desejo ainda maior de poder tocar num pedaço do vestido, das calças ou, com muita sorte, numa qualquer fugaz epiderme.
Do mesmo modo, imagino que, no que diz respeito às estrelas do desporto, se viva, nos Estados Unidos, uma situação análoga à que se assiste na Europa, com o basquetebol, basebol, futebol americano, etc. Por isso, estou certo que não me engano se afirmar que a massa popular que segue, com fervor, os diversos campeonatos destas modalidades seja, na interpretação obsessiva que a caracteriza, semelhante à Europa do futebol. Neste sentido, Portugal não foge, portanto, à regra (esta afirmação é exposta sem certezas, pois não sei exactamente se a parolice que grassa no nosso país relativamente à visão do fenómeno do futebol tem paralelo com os restantes países da União Europeia). Mas gostava, sinceramente, que as coisas se não passassem exactamente assim. Neste sentido, a educação escolar (que muitas vezes tem as costas largas) terá, aqui, um papel preponderante. Mas quando a própria escola não resiste ao impacto mediático da modalidade quando, por exemplo, convida uma estrela de futebol a visitá-la, fazendo desse dia feriado escolar, torna-se, assim, parte do problema e não da solução. A cultura da irrelevância grassa, também, no meio escolar.
Nunca mais me esqueço do dia em que me cruzei, na estrada, com o autocarro da selecção. Batedores à frente, de mota, mandando encostar os automobilistas que guiavam em sentido contrário. Mais batedores, de carro, com todas as luzinhas ligadas, com o mesmo sentido persecutório. Finalmente, o autocarro a ocupar mais de metade da estrada, a alta velocidade. Um espanto! A selecção iniciava, arrebatadamente, o seu estágio, em Chaves (não se deslocava, portanto, para jogo algum. A tarde findava e os jogadores, provavelmente, não podiam chegar atrasados para o... jantar). Os automobilistas que transitavam na estrada, ora em sentido contrário, ora no mesmo encaminhamento da selecção (acompanhar o autocarro era tarefa de muita dificuldade, visto que a velocidade ultrapassava, em muito, os limites legais) eram completamente marginalizados pela própria Brigada de Trânsito. Na cabeça dos polícias, o fito era apenas um: fazer com que o autocarro que transportava os jogadores chegasse a tempo ao que os jornalistas desportivos (uma outra espécie curiosíssima pindérica no panorama jornalístico) apelidam de quartel-general.
Agora, com novo euro, uma outra dose de futilidades assoma. Sabemos já os luxos exageradíssimos que esta gente tem em Viseu, nas pessoas que vão esperar horas e horas e horas para ver um autocarro cheio de pressa e cheio de assinaturas de famosos (os nosso famosos são uns pacóvios). O circo começa. O povo assiste. O governo agradece.
Por tudo isto, gostaria que a nossa diferença, enquanto povo e nação secular, se iniciasse precisamente na construção duma realidade social diferente, em que a inocuidade informativa não tivesse, conscientemente, lugar nas chamadas grelhas editoriais. Neste sentido, aposta de Portugal, enquanto país deste espaço europeu, deveria também enquadrar-se num âmbito sócio-cultural mais interveniente e, porque não, inovador. Seria, sem dúvida, uma boa forma de exportação. E quem sabe de receitas.
(publicado no jornal A Voz de Trás-os-Montes no dia 22/05/2008)
1 comentário:
Concordo plenamente consigo. O futebol constrói "cientistas" do mesmo modo que se alimentam as religiões, ou seja de concreto não têm nada.
Quando Deus faz um milagre a um religioso, por exemplo, esquecem-se que, nessa mesma hora, um terramoto mata uns milhares algures. No futebol quando um jogador velho falha por exemplo, é porque tem idade a mais mas se acerta é porque tem experiência.
Posso dar mais de uma centena de exemplos parecidos...
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