domingo, dezembro 19, 2010

cavaco

Cavaco tem, afinal, uma ficha na PIDE. Em 1967, preencheu um pequeno e obrigatório boletim para que lhe fosse permitido o acesso a certos documentos secretos da NATO. O opúsculo é daqueles que cheira a burocracia ditatorial. Nota-se, por parte do mais ou menos jovem Cavaco, uma formalidade igualmente burocrática no seu preenchimento. Daí que quando escreve, numa das alíneas, que se sente "integrado no atual regime político", podemos acreditar, sem qualquer esforço, que seria muito mais um ato de rigidez reflexiva do que uma mera inevitabilidade casuística. Por conseguinte, trazer à baila da campanha eleitoral achegas tão inócuas como estas parece-me pouco acertado. Até porque o 25 de abril - ou quem passou anos a lutar por ele - deve ser encarado como um movimento de génese generosa, longe de paternidades excessivamente dilatadas no tempo. Mas uma coisa é a diacronia política e outras (fazendo, embora, parte desta) são as campanhas eleitorais. Os exemplos desvirtuosos são vários. O próprio Mário Soares parece que não resistiu de apontar as virtualidades da monogamia casamenteira, dirigindo-se, obviamente, ao então seu principal rival Sá Carneiro, em situação concubinal com Snu Abecassis. Como também é seu timbre, mais tarde (muito mais tarde, quando tudo se decidira já) veio esboçar uma valorosa e arrependida mea culpa (passou-se o mesmo em relação a Freitas do Amaral, autorecriminando-se, já no alto do seu pedestal presidencial, por haver sido, na famosa campanha presidencial dos divisos 138692 votos, por vezes demasiado cruel nos ataques ao seu opositor).
Mas voltemos então a Cavaco e ao detestável boletim. O que é então pertinente naquilo? Nada mais nada menos que o insignificante campo das observações. Qualquer cidadão com alguma consciência social (Cavaco era então um ambicioso investigador universitário), não podendo prescindir da análise minuciosa desses documentos, preencheria o odioso panfleto da forma mais simplória possível, entregando-o depois aos insipientes serviços da ditadura, no caso concreto, da PIDE. Procedendo deste modo, Cavaco estaria, de certa forma, a lutar contra o statuo quo, isto é, contra o regime político (mesmo rabiscando que se encontra nele integrado). Mas o agora recandidato a presidente preferiu pincelar a coisa acrescentando, naquela delicada alínea das observâncias (não obrigatória, portanto), que não se dava com a segunda mulher do sogro.
Para mim, estas três linhas opinativas (as únicas de caráter desobrigatório) do candidato revelam muito mais da sua essência política e social do que o próprio documento. A sua justificação para isto, expressa na última semana, vem igualmente ao encontro deste ponto de vista: "não sei o que é que o regime pensava de mim nessa altura, mas tendo-me mandado para Moçambique 10 dias depois de casar, quando ainda estava em viagem de núpcias, e estando eu no terceiro ano do curso, não me tendo deixado terminar o curso, eu e a minha mulher com certeza que não pensavamos bem do regime". Sinceramente, já o vi em melhores dias. Uma vez, por exemplo, respondeu de forma admirável a uma provocação, quando lhe perguntaram onde estava em abril de 74. Disse simplesmente que se encontrava na Fonte Luminosa, a ouvir Mário Soares e outros democratas a discursarem.

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vamos pela estrada e sentimo-nos bem. lá fora, o vento sopra, a neve cai, voam duas aves perdidas. eu sei que tenho de chegar a algum lugar...


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