sábado, julho 05, 2008

o mundo fantástico do futebol

Existe, em Portugal, uma dimensão (desculpem esta junção vocabular) psicossocioprofissional paralela à que os cidadãos comuns absorvem no seu quotidiano. É o futebol. No entanto, apesar desta espécie de twilight zone, este desporto ocupa, nas televisões, um lugar incontestado. Não só nas televisões, mas na generalidade da imprensa. Os jornalistas que gravitam em redor do fenómeno defendem-se afirmando que o mesmo se passa nos outros países. No entanto, estou propenso a crer que não é bem assim. Em Portugal, o futebol adquire contornos (quase) patológicos. Viu-se no recente campeonato europeu, em que tudo o que era importante deixou de o ser o jogo, como, por exemplo, a crítica às opções do treinador e o desempenho de alguns jogadores, para passarmos a ser inundados com o irrelevante, nomeadamente com as transferências dos jogadores, com as namoradas e mulheres destes, com o assentimento contratual de Scolari face ao clube londrino Chelsea (o treinador espanhol também assinou publicamente com o clube turco Fenerbahçe antes ou durante o europeu e não foi por isso que deixou de ser campeão, nem tão pouco se construiu, na imprensa espanhola, em momento algum, alguma espécie de desconfiança face ao seu trabalho) e, sobretudo, com a exposição desavergonhada, por parte das televisões, duma certa imagem de um Portugal parolo, através do que algumas pessoas (nos seus quinze minutos de fama que falava Andy Wharol) tão prodigiosamente alcançaram. Muitas vezes, os jornalistas não se coibiam de alcançar os resultados majestáticos do seu trabalho explorando, impudicamente, os sentimentos naturais das pessoas que ainda se encontram, mentalmente, "lá fora", no estrangeiro, a ganhar a vida, com saudades do Verão português. Por isso, vimos muitos "beijinhos para a minha mãe, para os meus amigos que ficaram lá na terra", ou o "diz adeus, filha, diz adeus para a televisão". A tudo isso assistimos, impávidos e serenos, em nome do futebol. Tudo isso passou como água que corre debaixo da ponte. É a chamada espuma televisiva.
Neste sentido, entendo que a televisão, nos dias de hoje, tem uma profundíssima responsabilidade educativa. Daí que, sejam elas privadas ou públicas, não podem ser orientadas tendo como intuito exclusivo o lucro que advém da receita publicitária. Por isso, não creio que o estafado argumento que é à televisão do Estado que compete o estabelecimento de uma maior consciencialização de certos valores que devem fazer parte da nossa vida enquanto povo autónomo, e que os outros - os privados - são livres para iniciarem uma demanda desenfreada ao lucro, independentemente dos meios que usam, seja um bom ponto de partida para uma regularização do meio informativo audiovisual. Pelo contrário, o que temos visto é que as três televisões de canal aberto existentes em Portugal (deixo de fora a 2) são guiadas pela mesma cartilha. E não vejo mal algum nisso. Só que esta (a cartilha) deve ser alterada. E não basta uma regularização pseudo-púdica que orienta ilusoriamente os filmes e alguns programas supostamente atentatórios à moral pública. Com efeito, torna-se necessária uma intervenção objectiva de quem tem competência legal para o fazer (para que serve, verdadeiramente, a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social?) para que os diferentes blocos informativos não constituam, no seu conjunto, uma espécie de força de bloqueio (obrigado, sr. presidente Cavaco) a um desenvolvimento verdadeiramente qualitativo dos portugueses. E é principalmente nestas épocas de "festa futebolística" que urge intervir, sem qualquer receio da palavra. No fundo, a pergunta que se deve colocar é só uma: Afinal, que país queremos?
Reparei agora que iniciei este post com um objectivo ligeiramente contrário ao que se desenvolveu. Na verdade, era minha intenção descrever a impressão que me causou a recente reunião do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol relativamente aos casos do Boavista e de Pinto da Costa. O fio narrativo encaminhou-se, portanto, noutro sentido. Mas o início deste artigo pode ser recuperado: a dimensão fantástica (no sentido literário do termo) que o futebol ocupa na nossa sociedade. Ficámos, assim, a saber que o presidente do Conselho de Justiça deu a reunião por encerrada, deixando o seu termo registado em acta, assinada por ele e por quem a secretariou. No entanto, os restantes elementos, não se convencendo dos argumentos apresentados pelo presidente, continuaram reunidos e deliberaram não só punir o Boavista e o Pinto da Costa, como também instituir um processo disciplinar ao presidente do Conselho de Justiça, precisamente o que tinha orientado, durante toda a tarde, a reunião. Por outro lado, ficámos a saber o grau de envolvimento e desconfiança que esta gente nutre uns pelos outros, ora seja do ponto de vista político, ou desportivo, ou - o que é mais grave - humano. Ouçamo-los, olhamo-los e depressa vislumbramos que tudo não passa de mais uma discussão de café, em que um (um qualquer juiz conselheiro, pois parece que esta é uma casta proeminente nestes órgãos) diz uma coisa, e outro, desconfiado, reflecte uma outra qualquer verdade irrefutável. Depois, no final, todos sabemos que nem sempre ganha quem joga melhor. São as regras do futebol.

(publicado no jornal A Voz de Trás-os-Montes, em 10-7-08)

1 comentário:

Anónimo disse...

Meu caro amigo!
Espero que este seu texto não se perca. Está lindo... Você com os seus artigos são a prova que, de facto, não são os melhores que escrevem nos jornais, não são os melhores que jogam futebol na 1ª, não são os melhores que recebem milhões para treinar equipas,... Há para aí muita gente.
Parabéns!

coisas

vamos pela estrada e sentimo-nos bem. lá fora, o vento sopra, a neve cai, voam duas aves perdidas. eu sei que tenho de chegar a algum lugar...


neste momento...