terça-feira, julho 01, 2008

A4 e barragem do sabor: dois símbolos antagónicos

Não há governo que resista a umas boas obras de regime. Daí que o actual governo liderado por José Sócrates se apresente, neste pressuposto, igual aos restantes. Acontece que, muitas vezes, a cegueira conduz, de forma irreversível, a disparates. Entendo, no entanto, que existem explicações para todos os gostos. Há mesmo partidos – como é o caso do PSD – que têm uma capacidade extraordinária de transfiguração ideotemática, ao defenderem determinadas orientações programáticas quando se encontram a governar, e outras – muitas vezes opostas – quando estão na oposição. O exemplo do aeroporto revela-se, neste sentido, paradigmático (nunca se entendeu muito bem qual a posição deste partido sobre este assunto). Mas muitos outros se podiam inventariar, como por exemplo, a surpreendente colagem de Manuela Ferreira Leite a preocupações que lhe estiveram sempre (aparentemente?) distantes, como é o caso dos mais desfavorecidos da nossa sociedade. É claro que ela tem o direito de uma reorientação na sua forma de estar na vida política. Mas não deixa de soar a uma certa hipocrisia que, a pouco mais de um ano das eleições legislativas e com uma classe média cada vez mais pobre e com os pobres cada vez mais pobres, a líder do principal partido da oposição se remeta a uma posição que ninguém – nem mesmo os seus correligionários políticos – lhe estava habituado a ver.
Esta espécie de fusão ideológica apresenta-se na sua plenitude quando se trata de obras públicas, tornando-se muito difícil fazer uma distinção entre PS e PSD. Como sabemos, o governo apresentou, para Trás-os-Montes, duas obras emblemáticas: a continuação da auto-estrada Porto-Amarante até Bragança e a Barragem do Sabor. Ambientalistas à parte (não é que devam estar à parte, mas confesso que me é difícil entender esta gente, principalmente quando os argumentos evocados começam a entrar numa fase de delírio), no meu entender bastaria o argumento da água para que esta obra se apresente quase como uma espécie de manau dos deuses. Convém não esquecer que toda a área geográfica em que se insere a barragem é, tradicionalmente, uma das que maior sofrimento teve ao longo décadas de seca. Há uns anos não muito distantes, a água que corria nas torneiras só durava duas ou três horas e, durante esse escasso período de tempo, era um ver se te avias no enchimento de tachos, panelas e alguidares. Por outro lado, há que considerar o aproveitamento das energias alternativas, com muito bem justificou José Sócrates. Na verdade, não podemos estar num permanente sobressalto em relação à nossa própria independência, pois nos dias que correm, o perigo deixa de ser bélico (ninguém acredita que a Espanha comece a entrar por aí adentro com tropas e viaturas blindadas) para passar a ser económico (como se viu com a recente greve dos camionistas em que nos vimos, de um dia para o outro, completamente desaustinados, sem gasolina e gasóleo).
No entanto, este mesmo pressuposto desenvolvimentista já não se adequa relativamente à auto-estrada até Bragança, com a construção de um túnel de seis quilómetros de extensão – o maior do país e um dos maiores da Europa (como aliás, convém ao nosso ego). Ficamos, pois todos contentes, a começar pelo governo e acabando, evidentemente, nos autarcas que, muitos deles, têm uma visão de desenvolvimento homogéneo que deixa muito a desejar. A pergunta que se coloca é, quanto a mim, pertinente: para quê uma auto-estrada até Bragança? Com efeito, o fluxo de trânsito na IP4 não justifica de todo a transformação desta via numa auto-estrada. Não seria melhor canalizar estes 350 milhões de euros para um melhoramento da rede rodoviária (incluindo, naturalmente a IP4, com o seu alargamento em toda a extensão) e ferroviária (que praticamente deixou de existir) do distrito de Bragança? É que Trás-os-Montes não é só o eixo Vila Real-Bragança. De facto, continua a ser uma vergonha as acessibilidades que o interior transmontano apresenta. Só que enquanto existirem autarcas que criticam a centralização quando não lhes convém e aplaudem-na quando lhes é favorável, o país continuará a existir como um dos mais desiguais da Europa.

(publicado no jornal A Voz de Trás-os-Montes no dia 3/07/2008)

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vamos pela estrada e sentimo-nos bem. lá fora, o vento sopra, a neve cai, voam duas aves perdidas. eu sei que tenho de chegar a algum lugar...


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